Essa é minha história. Não importa para mim se irá ou não acreditar nela. Também não me importo com qualquer outra coisa. Peço-lhe, apenas leia.

Vinte e nove.

   No dia do tal jantar, fiquei muito apreensivo, como não ficava há tempos. Acho que todos já sentiram o que senti. Aquele frio imenso na barriga, misto com uma sensação intensa de correr, gritar, sumir. Estava muito nervoso.
   Enkil - que passara a noite sendo Ícaro - chegou alguns minutos antes do combinado; vestia-se socialmente, porém sem muito luxo. Mario recebeu-o seco, coisa muito incomum - normalmente era simpático aos extremos.
   - Então você é o famoso Ícaro que anda tomando tanto tempo de meu sobrinho? - disse ele, com um sorriso propositalmente falso.
   Tirando algumas indiretas aqui e ali, por parte de meu tio, o jantar ia muito bem, obrigado. Enkil estava sendo muito gentil, sempre com respostas inteligentes, dizendo que nossa amizade se devia ao fato de ambos terem boa sintonia quando o assunto era música e conhecimentos gerais. Eu evitava falar muito - temia dizer algo que acabasse com o jogo todo que Enkil inventava. E, se querem saber, parece que não sentiram falta de minhas palavras.
   Já estávamos nos servindo da sobremesa - torta de sorvete de morango com chocolate, realmente boa - quando meu tio, sem mais delongas, deu seu veredito:
   - Bom, senhor Ícaro, vejo que não é de fato má pessoa, e que não possui más intenções. Porém, tente entender meu lado. Não é de boa conduta que você e meu sobrinho fiquem se encontrando em sua casa, principalmente tarde da noite. E eu, como guardião de Rafael, tenho total direito de proibi-lo de algumas coisas, sendo que ele ainda não é um homem. Então, lhe peço que, quando desejar falar com meu sobrinho, venha até em casa, onde sempre será bem recebido.
   É claro que Enkil não ficou feliz com isso. Porém, só sobrou à ele aceitar. O jantar acabou com um certo quê de desentendimento. E nenhuma manifestação de opinião minha.

Vinte e oito.

   Uma semana se passou até que eu tivesse coragem de marcar o jantar que meu tio propusera, e que Enkil parecia tão ansioso por ir. Durante esse tempo, não me atrevi a falar ou me encontrar com Enkil; também dei um tempo para minha mente se acostumar com o turbilhão de idéias que deixavam-me louco.
   Percebi que, quando longe do sangue, me tornava mais calmo, paciente e compreensivo - como era antes. E pela primeira vez, me senti culpado por como tratara Aline.
   Ela, por sua vez, acho que me ignorava. Exatamente como eu havia pedido. Não pensem que estou relatando isso porque, de uma hora para outra, me apaixonei por ela e queria me desculpar. Não, definitivamente nada disso. Só que, não gostava quando as pessoas não gostavam de mim. Egoísmo de minha parte? Talvez.

Vinte e sete.

   Liguei imediatamente para Enkil, e lhe contei o acontecido. Ao contrário do que eu pensara, ele não se mostrou nervoso e muito menos apreensivo. Pelo contrário, pediu que eu não me preocupasse.
   - Como não me preocupar? Sabe, você não é exatamente o que chamamos de "amigo bom exemplo".
   - Já lhe disse, meu querido, se acalme. Posso tranquilamente ir a este jantar. Prometeu confiar em mim.
   Nada do que ele disse me despreocupou. Porém, vendo que eu já não havia mais argumentos para tentar contradize-lo, desisti. Desliguei o telefone e me sentei na beirada da cama. Olhei para o relógio de pedra que há tanto tempo ganhara de Mario. Pouco mais de três horas da manhã.
   Escondi meu rosto em minhas mãos. Afinal, o que raios eu estava fazendo? Passando meu tempo com um homem que me revelava coisas que ninguém nunca ouvira falar. Não era possível que, em um mundo tão moderno, segredos como esse ainda passassem despercebidos por milhares de cientistas e médicos e curiosos. Era loucura demais.
   Não me lembro bem como, mas sei que pouco depois dormi, pensando ainda em como tudo aquilo era uma grande confusão. Tive sonhos inquietantes. Neles, estava em uma maca de hospital, sendo constantemente examinado, furado e cortado, com todos os tipos mais estranhos de ferramentas médicas. Pessoas usando roupas brancas me assistiam por detrás de uma grande vitrine. Acordei diversas vezes na noite, assustado sem saber direito com o quê.