Essa é minha história. Não importa para mim se irá ou não acreditar nela. Também não me importo com qualquer outra coisa. Peço-lhe, apenas leia.

Vinte e seis.

   Neste dia das estrelas, cheguei em casa consideravelmente tarde. Mal entrei, fui abordado por Mario.
   - Onde estava, Horácio? - perguntou-me secamente.
   - Você sabe. Com Ícaro. Eu disse que estava com ele.
   - Ah sim, claro. Quero que convide-o para se juntar à nós, alguma noite dessas, em um jantar. Quero recebê-lo.
   Percebi logo que não era um simples convite.Mario queria saber mais sobre Enkil, que, para ele, se chamava Ícaro. Estava desconfiado, e, se me permite dizer, com todos os motivos para isso.
   - Verei com ele se quer vir - respondi lentamente demais, e admito, de forma suspeita.
   - Com certeza ele vai querer.

Vinte e cinco. (Dedicado à Taís)

   Eu olhava para o céu, com Enkil ao meu lado. Era noite, não havia nuvens, e a falta de luz artificial fazia com que as estrelas ficassem bem visíveis. De onde eu estava, não conseguia ver a Lua.
   - O que vê, Horácio?
   Olhei mais atentamente. Não via nada que já não tivesse visto - céu escuro, estrelas brilhantes, constelação. Continuei analisando, procurando pelo algo que provavelmente Enkil queria que eu visse - mas nada. Sabia que iria decepcioná-lo com isso.
   - Não vê nada de especial, certo? - ele me perguntou, me dando novamente a impressão de ter acesso aos meus pensamentos, de alguma forma. - Não esperava que visse, por hora. Venha, beba mais um pouco.
   Ele se sentou ao meu lado, e me estendeu o pulso, já cortado. Levantei-me um pouco e bebi. Novamente, nenhuma imagem, e sim a mesma sensação de antes - quente e viscoso. Mais rápido que previ, ele afastou o braço de mim.
   - Agora analise o céu novamente. Comece olhando exclusivamente para apenas uma estrela, à sua escolha. Entre em seu brilho. Veja como é intensa, e vá indo para sua borda, e vendo a perca desse brilho. Consegue ver isso?
   - Sim. É como se fosse um degradê.
   - Exatamente. Agora focalize em alguma parte distante de estrelas. Focalize a escuridão, e após isso, vá se aproximando da estrela. O que vê?
   - Escuridão sendo clareada aos poucos. Consigo ver vários tons, não é mais simplesmente um plano escuro com pontos de luz. Agora vejo a mudança discreta de tons, o negro se tornando cada vez mais claro, em tons de azul, até se tornar branco.
   - E o quê você acha dessa nova visão?
   Eu estava abismado demais para responder tal pergunta. Sentia que minha visão sempre fora limitada, e agora uma nova e imensa tabela de cores estivesse à minha disposição. Fiquei cerca de quarenta minutos à observar o céu, com Enkil ao meu lado; e a cada novo detalhe - como a visão de estrelas que, ao invés de brancas, tinham uma luz amarelada ou avermelhada - apontava e exclamava, como uma criança em um parque de diversões a observar algo chamativo. Enkil apenas concordava, e às vezes esboçava um suave riso.

Vinte e quatro.

   - Percebeu algo diferente, após nosso primeiro encontro? - perguntou Enkil.
   Estávamos novamente em sua sala, sentados frente à frente. Percebi que ele deixara a caixa com nosso athame estrategicamente sobre a mesa de centro. Fiquei pensando por um instante, antes de responder.
   - Meus sentimentos ficaram mais intensos, e meus sentidos também. Podia sentir as emoções, como o ódio, em cada célula do meu corpo, em cada parte do meu ser. E com um pouco de concentração, eu era capaz de ouvir e sentir fisicamente muitas coisas que antes se passavam indiferentes por mim.
   - Exatamente, meu rapaz. Meu sangue te aumenta a percepção. Fico feliz que tenha descoberto isso sozinho. Algum motivo especial para ter percebido isso?
   - Muitos motivos. Não acho necessário citá-los.
   - Certo, como quiser - disse-me ele, com um sorriso indecifrável. - Hoje quero te mostrar uma coisa especial. Algo me diz que irá gostar disso.
   Bebemos o sangue como da outra vez. Ele me cortou no mesmo lugar, porém no braço contrário.
   A diferença veio quando eu bebi. Primeiramente, me sentia mais seguro, e não tinha medo, nenhum medo. Cortei-lhe ansioso pelo que estava por vir - queria ver mais cenas de como fora sua vida; porém isso não aconteceu. Dessa vez apenas senti algo quente e viscoso descer pela minha garganta, e algo quente, muito quente, tomar conta de mim.
   - Agora chega, chega - disse ele, me empurrando de seu braço. Percebi que, como da outra vez, estava inconscientemente grudado ao corte, sugando-lhe o sangue. - Venha comigo, veja isso.
   Ele me levou para o cômodo ao lado, na cozinha. Nunca havia estado lá - como a sala, era simples: paredes e piso brancos, armários de alumínio e alguns aparelhos eletrodomésticos. Me segurando pelo braço, me guiou até a porta, que levava para o quintal dos fundos. O chão era de concreto, e não havia nenhuma iluminação. Mais ao fundo, eu podia distinguir a silhueta de uma árvore, e pelo seu cheiro, percebi que se tratava de um limoeiro.
   - Quero que se deite no chão, e olhe para o céu, para as estrelas.
   Sem pestanejar, fiz o que me mandara. O chão era desconfortável, mas não me importei. Percebi que ele se deitara ao meu lado, também olhando para cima.
   - Agora, vou te ensinar a beleza, meu amigo.

Vinte e três.

   Pouco vi Aline no dia seguinte, ou no seguinte, ou no seguinte. Ela parecia me evitar sempre que possível, e eu sinceramente não me importava com tal.
   As mudanças em mim agora eram bem mais amenas que na noite em que bebi o sangue pela primeira vez; até mesmo pensei menos no assunto do quê acreditei que pensaria. Admito, me tornei mais antissocial - mas apenas isso, no começo. Ansiava pelo próximo encontro com Enkil.

Vinte e dois.

   Não pensei, por um instante, após Aline ter me deixado, no que acontecera.
   Fechei meus olhos, como havia feito antes, e esvaziei minha mente de qualquer coisa que viesse a me distrair. Queria que os sentidos tomassem conta de todo o meu ser. Respirando lenta e profundamente, senti o ar abafado ao meu redor, e a brisa quente que vinha da janela aberta; concentrei-me ao máximo para sentir cada fibra de meu corpo, também - o peito se elevando e abaixando, com a respiração, a sensação das pálpebras sob meus olhos, a maciez da colcha em meu corpo nu, a pulsação dolorida incessante de meu pulso recém cortado. Apurei meus ouvidos para ouvir, ouvir tudo, porém sem prestar atenção especial em nenhum som: ouvia os carros na avenida distante, o cachorro insistente, com um latido rouco e feio, o fogão elétrico sendo acionado, e alguém conversando alegremente na rua, mesmo eu não entendendo as palavras. A vista captava exatamente aquilo que alguém vê quando está de olhos fechados - escuridão, às vezes interrompida por ondas e pulsações de luz fosca. Sentia o cheiro de meu perfume amadeirado, do perfume cítrico de Aline, de lustra-móveis, de roupa limpa e de sexo. Em minha boca, apenas o gosto de saliva.
   Posso ter ficado por horas a fio contemplando tais sensações. Não pensei em nada, não lembrei de nada - apenas pensei. Depois de um tempo considerável, adormeci, ainda sem abrir os olhos ou me mover.

Vinte e um.

   - O que quer comigo? - voltei a perguntar.
   - Eu já te disse, Horácio, quero que me ame! - Aline sentou ao meu lado, tentando me tocar, mas me afastei. - Por favor, pelo menos por hoje.
   A vontade de ficar sozinho só crescia em mim.
   - Se eu te der o que quer, vai me deixar em paz?
   Em situações normais, eu nunca diria isso. Mas não era uma situação normal. Eu sentia meu cérebro pulsando, sentia meu coração e o sangue em minhas veias. Escutava sua respiração como a milímetros de mim, escutava o maldito carro lá fora, e o cachorro que latia, sabe-se lá aonde. Eu precisava pensar.
   - Sim - respondeu ela, depois do que pareceu ser uma eternidade.
   Aproximei-me dela sem mais delongas, abraçando sua cintura fina e beijando seus lábios ressequidos. Não me sentia disposto a tal, mas se aquilo faria-a me deixar, que assim fosse. Creio não ser preciso entrar em mais detalhes. Para um usar um termo belo, fiz amor com ela. Mesmo que não tivesse nada de amor naquilo.
   Como eu esperava que acontecesse, ela me deixou pouco tempo depois, constrangida e provavelmente percebendo que eu não queria que continuasse do meu lado. Antes de bater a porta ao sair, sussurrou um "boa noite", que não respondi.

Vinte. (Dedicado à Thavi)

   Essa primeira "sessão" com Enkil já me fez mudar. Quando cheguei em casa, percebi que estava mais quieto, mais pensativo, e que sentia uma vontade enorme de ficar sozinho. Precisava colocar meus pensamentos em ordem, precisava de silêncio e solidão.
   Cumprimentei Mario brevemente, fui ao meu quarto e encostei a porta. Deitei-me na cama, fechei os olhos e relembrei das cenas que vira ao beber o sangue, tentando me lembrar de cada ínfimo detalhe.
   Escutei que abriam minha porta. Continuei indiferente. Senti o perfume cítrico - Aline. A intromissão dela passara de "divertida" para "irritante". Me irritava ela entrar no meu quarto sem bater à porta, me irritava ela me olhar com desejo reprimido, me irritava o perfume, o barulho dos passos dela e sua respiração.
   Abri os olhos e me deparei com sua mão à poucos centímetros de meu rosto. Ela soltou uma exclamação de susto e pulou para trás.
   Uma ira totalmente desconhecida por mim invadiu meu corpo. Levantei-me, sem desgrudar os olhos dela.
   - O que quer comigo?
   Me agradava ser tão alto quanto ela. Provavelmente isso ajudava-a a esquecer que eu era consideravelmente mais novo que ela.
   - Quero que me ame - ela respondeu, com voz falha.
   Essas palavras tiveram, para mim, o mesmo efeito que um tapa. E quando lembro disso, quase acredito que até movi o rosto, como se tivesse levado um.
   Amor, amor, o simples amor, o que acontecera com ele? Com a maneira fácil de amar, amor por amor, amor por um instante, e nada mais? Sumira. Todos os conceitos, tudo, agora, parecia complicado. Era como conseguir duplicar os sentidos e o intelecto, mas não saber como usar isso.
   Sentei-me na cama, com as mãos no rosto, sem perceber tal gesto. Eu precisava dar um fim naquilo, precisava deixá-la longe de mim, precisava pensar, em paz.