Essa é minha história. Não importa para mim se irá ou não acreditar nela. Também não me importo com qualquer outra coisa. Peço-lhe, apenas leia.

Dezenove. (Dedicado à Ana Paula)

   "Alguma vez, seu coração, espírito ou pensamento estiveram concentrados em uma só coisa que o impedisse de ter qualquer outra preocupação? Você se sentia fermentar e ferver, e o sangue, em ebulição, palpitava nas veias, realçando a cor da face. Seu olhar estranho parecia querer apreender no espaço vazio formas invisíveis a todos os outros olhos e suas palavras se extinguiam em suspiros inquietantes. E seus amigos perguntavam:
   - O que aconteceu, meu caro? O que que você tem?
   E você se esforçava para descrever sua visão interior e seu colorido quente e suas sombras e luzes, tentando entrar no assunto. Mas tinha a impressão de que seria necessário mostrar, logo, com suas primeiras palavras, tudo o que você carregava de estranho, magnífico, horrível, alegre, aterrorizante, para ferir instantaneamente os ouvintes como se fosse uma descarga elétrica. Entretanto, todas as expressões, tudo que exprime em palavras, parecia incolor, glacial e morto para você.
   Tentava procurar, balbuciar, pedindo palavras. Mas as tolas perguntas de meus amigos, como ventos gelados, abaixavam seu fogo interior, até apagá-lo. Porém, se anteriormente, como um pintor audacioso, você tivesse esboçado com grandes traços atrevidos os contornos da sua visão interior, seria fácil, então, ir acrescentando cores cada vez mais quentes, e a multidão de formas diversas entusiasmaria seus amigos, que se veriam, como você mesmo, retratados no quadro que jorrou de seu coração."
   - O Homem de Areia, E. T. A. Hoffmann

Dezoito. (Dedicado à Camille)

   Enkil segurou meu braço com firmeza, sem dizer palavra alguma. Eu sentia medo, porém não resisti. Ele pegou o athame, e com precisão fez um furo em meu pulso. Não reclamei. Ele sorriu, olhando para o sangue fluir, e aproximou seus lábios do corte. Bebeu.
   Mais uma vez, aquela sensação tão complexa, tão sublime. Eu escutava o sangue passeando pelas minhas veias, e escutava meu coração descompassado. Mas dessa vez, ouve outra coisa também. Cenas e mais cenas se passavam pela minha mente. A primeira vez que vi as fotos de meus pais, o canário de Mario, minha tia Luisa dizendo que eu não tivera infância, a garota dizendo que eu era insensível, o vaso chinês quebrado, muitos apertos de mãos, beijos, choros. Tudo se passava pela minha cabeça, rápido, em turbilhões. Então parou.
   Percebi que Enkil se afastara de mim. Não saberia calcular quando tempo durou. Minutos, provavelmente. Estava arquejante, e um filete de sangue escorria-lhe da boca. Olhou para meu rosto, se recompondo, e disse:
   - Agora é sua vez.
   Me entregou o athame, que peguei com insegurança. Queria protestar, mas ele já havia me estendido o braço.
   - Quero que você corte aqui, acima do cotovelo - me indicou um ponto no antebraço, em que uma veia particularmente visível se encontrava. - Fure aqui com a ponta do athame, certo? Depois puxe um pouco, para ficar um furo de tamanho considerável. Não precisa ter medo, se estiver me machucando além do necessário, te avisarei. Agora faça.
   Minha mão tremia. Respirei fundo, para recuperar o controle. E cortei, como ele havia me dito para fazer. O sangue jorrou rápido.
   - Isso, meu anjo, agora sabe o que fazer.
   Eu não sabia. O sangue escorria pelo braço dele, e ao mesmo tempo que eu sentia uma repulsa enorme, eu era atraído por aquilo. "Deixe de ser medroso, experimente", algo dizia em minha mente. E assim o fiz.
   A sensação era tão boa quanto a outra, porém, de uma forma contrária. A sensação que a outra provocava era de submissão, enquanto essa era de poder. Eu senti o gosto metálico do sangue, porém pouco percebi-o. Um barulho semelhante à muitos sussurros invadia meus ouvidos. E então uma cena me veio na mente; era como se eu estivesse me recordando de uma lembrança minha, porém não era minha, não tinha como ser.
   Na cena, uma mulher me banhava, apressada. Eu devia ser uma criança. O lugar era feio, um banheiro de piso e azulejos brancos, encardidos. O água que caía sobre meu corpo era fria. Ela conversava apressada comigo - eu não conhecia a língua que ela falava, porém entendia perfeitamente.
   - Não deve, nunca, contar a alguém sobre isso, certo, meu filho? Se contar, não poderei mais lhe dar de beber. Se contar, serei expulsa.
   - Eu já sei disso, já me disse isso - eu respondi, naquela mesma língua, e com uma voz que não era e nunca fora minha.
   A cena mudou. Agora eu estava em um quarto, com chão de madeira e paredes brancas, sentado em uma cama de ferro muito simples, com um colchão fino e desconfortável. O sol da manhã entrava pela janela, e eu ouvia crianças brincando do lado de fora. Ao meu lado, outra cama, idêntica à minha. Um garoto maior que eu estava nela, com a boca grudada no braço da mulher que me banhara. Eu sabia o que ele estava fazendo.
   A cena se dissipou e fui trazido com violência de volta à mim. Eu respirava rapidamente. Enkil se encontrava à minha frente. Segurou meu braço e, com um algodão, limpava o sangue de onde ele havia cortado anteriormente.
   - Segure isso aqui - disse ele. - Faça parar de sangrar.
   Segurei o algodão com força em meu pulso cortado. Ele fazia o mesmo com seu braço.
   - Aquela era a mulher do orfanato? - perguntei, com a voz falha.
   - Sim. Pensei que gostaria de ver isso.

Dezessete. (Dedicado à Paula Cristhie)

   Enkil saiu da sala, sem nada dizer, seguindo de novo para o corredor. Voltou após alguns instantes, carregando uma pequena caixa de veludo negro. Depositou-a na mesinha central, e a abriu, revelando um pequeno athame, prateado, com o punho revestido de pedras verdes. Mas esse, ao contrário dos normalmente usados na Wicca, possuía os dois gumes afiados. Tive medo.
   - Esse vai ser nosso instrumento - explicou ele. - Para cada novo pupilo, um novo athame. Gosta dele?
   Fiz que sim com a cabeça.
   - Pois bem. Então usaremos ele. Antes de começar, gostaria de dizer que tenho todos os tipos de exames, recentes, logo ali, caso queira vê-los. Não tenho doenças.
   - E como sabe que eu não tenho nenhum tipo de doença? - perguntei.
   - Eu saberia se tivesse - e deu um de seus sorrisos misteriosos. Não quis saber o que aquilo significava, exatamente. Fiz sinal para que prosseguisse. - Você terá que passar por uma iniciação. Não é complicado. Não terá que fazer nada, a não ser confiar em mim. Certo?
   - Como vai ser isso? - admito, eu estava com medo. E quem não estaria?
   - Eu vou te perfurar, ainda não sei exatamente onde, para alcançar alguma veia digna de tal. Eu poderia te cortar, mas isso é desnecessário, causaria mais dor, demoraria mais a cicatrizar e poderia deixar marcas. E vou beber a quantidade necessária. A sensação, para você, vai ser praticamente a mesma que a anterior, com a diferença que agora já sabe como é. E, depois, você irá beber do meu. Perguntas?
   - E se eu não gostar de beber?
   Ele deu uma rápida gargalhada, sem alegria.
   - Acredite, você irá gostar.
   Indiquei novamente com a cabeça de que tinha entendido. Ele parecia pensar.
   - Onde acha que a dor será mais suportável para você? - perguntou.
   Dei de ombros. Não fazia ideia de que lugar doeria menos.
   - Gosto da sua forma de mostrar interesse agindo desinteressadamente. Enfim, eu aconselharia o pulso. A pele é fina, o que faz com que doa menos. Pode ser?
   Fiz que sim.
   Ele retirou o athame com cuidado da caixa, e fez um pequeno corte em sua mão, como que para testá-lo. Era realmente muito afiado. Olhou para mim, como quem espera. Dei-lhe o braço, sem nada dizer.

Dezesseis (Dedicado à Shabele)

   - A única religião que chegou perto de todo esse conhecimento foi o xamanismo - recomeçou Enkil. - Somente o xamanismo entende que o sangue tem poder e um grande número de mistérios. Para citar algum trecho anônimo que ouvi em muito tempo de pesquisa, temos: "o sangue é a vida do homem, a primeira encarnação do fluido universal, a luz vital materializada". Muitos outros povos mais primitivos acreditavam que sangue era algo poderoso, do contrário, o que explicaria os sacrifícios sangrentos que todos um dia já ouvimos falar? Mas a mulher do orfanato nos explicou uma coisa. Hoje, podemos conseguir essa energia que encontramos no sangue através do amor, da alma, através daquilo que espero ter de você.
   - O sangue, como muitos pensam, não carrega somente o oxigênio de que nossas células necessitam. Ele contém todos os registros da vida da pessoa, todas as imagens, desejos, lembranças, sentimentos, e, se você souber filtrá-lo o suficiente, até mesmo o conhecimento.
   - Então, no nosso primeiro encontro, teve acesso à todas essas informações minhas? - perguntei.
   - Não. Eu poderia, se quisesse, mas não; eu estava concentrado em algumas coisas, apenas. As coisas necessárias para eu saber se poderia voltar a te encontrar.
   - E o que exatamente quer me ensinar?
   - A saber obter e aproveitar o sangue, e também a dar seu sangue sem deixar que tirem todo tipo de informação de você. E quero te mostrar como o sangue, o meu sangue, pode te fazer ver as coisas de um modo diferente, ver a verdadeira beleza. Ver a beleza nas coisas que antes sentia repulsa.
   Eu ainda estava repleto de perguntas, algumas essenciais, outras aparentemente tolas. Mas não queria fazê-las. Minha mente estava tão cheia de novas informações que eu precisava colocá-las em ordem antes de saber mais. Disse isso para ele, com palavras fracas.
   - Como quiser, meu mais novo pupilo - respondeu ele. - Vai querer terminar nossa reunião por aqui?
   - Não! - respondi, mal ele terminando a frase. Me espantei com minha exclamação e me recompus. - Quero que faça de novo.
   O sorriso dele foi discreto e indescritível.

Quinze. (Dedicado à Larissa)

   - Eu já fiquei três anos no Reino Unido, dois no Vaticano, cinco em Portugual, e agora, estou a três meses no Brasil. Você é o primeiro que encontro e que acredito merecer meu conhecimento e Os Segredos do Sangue. - disse Enkil, com um sorriso simpático para mim.
   - Como chegou até mim? - perguntei.
   - Eu tenho bem determinada as características que espero de meus pupilos. Inteligência, curiosidade; e carência, isso é indispensável. Um jovem sem carência não seria capaz de me amar o suficiente. Cheguei nessa cidade por acaso. Fui até o Rio de Janeiro, depois para São Paulo. Mas eu não ensino em grandes cidades, então, à esmo, vim para cá. Frequentei bibliotecas e livrarias, à procura de alguém interessante de se observar, e cheguei à você. Através de seus vizinhos descuidados, fiquei sabendo que era órfão, inteligente, simpático e bem educado. Também descobri bastante sobre seu tio. Me interessei por você.
   - E o que acha que pode me ensinar? - perguntei também, permanecendo com meu tom irônico. Muitas vezes, a ironia nos faz sentir fortes; quanta ilusão!
   - Inicialmente, Os Segredos do Sangue, lógico.
   - Então conte-os de uma vez.
   - Claro, meu jovem.

Quatorze. (Dedicado à Alana)

   - Nunca fomos adotados - continuou Enkil. - Amil foi o primeiro a deixar o orfanato, com a promessa de que, quando saíssemos, nos juntaríamos a ele. E foi isso que aconteceu. Quando Mekare, a mais nova, se juntou à nós, é que realmente começamos a considerar a ideia de fazer o que a mulher nos orfanato nos imcubira.
   Ele fez uma pausa, parecia estar colocando os pensamentos em ordem. O olhar estava distante, através da janela.
   - Continue - pedi educadamente.
   Eu estava fascinado por sua história. Apenas de tudo ser tão irreal, eu sabia que era verdade. Tinha que ser verdade.
   Ele voltou a focalizar o olhar em mim.
   - Decidimos, por amor à nossa cuidadora, fazer o que ela nos disse. Traçamos um plano. Éramos quatro, e estávamos decididos a espalhar Os Segredos do Sangue por todo o mundo. Fizemos uma lista dos países que cada um visitaria. Deseja vê-la?
   - Sim, claro.
   Ele saiu por um corredor escuro. Voltou pouco tempo depois, carregando um papel dobrado. Me entregou.

   Amil: Afeganistão, África do Sul, Egito, Rússia, Grécia, Índia, Marrocos.
   Akasha: Canadá, Estados Unidos, México, Japão, China.
   Enkil: Portugual, São Tomé e Príncipe, Brasil, Espanha, Reino Unido, Vaticano.
   Mekare: França, Alemanha, Irlanda, Itália, Romênia, Austrália, Noruega, Polônia.

   - Como escolheram os países que visitariam?
   - Ao contrário do que pode parecer, não ouve muitos projetos. Fizemos uma lista inicial de países que achávamos que mereciam nossa visita. Todos países de influência considerável. O único acrescentado depois foi São Tomé e Príncipe, pois achamos que o Continente Africano estava desfalcado, e o escolhemos por ser de língua portuguesa, dialeto que algum de nós já teria que aprender. A divisão foi feita por puro interesse de cada um pelo país. Alguns, como o Egito e a Romênia foram disputados, por motivos óbvios.
   - E então sairam pelo mundo, viajando e bebendo sangue? - perguntei, cheio de sarcasmo.
   - É lógico que não. Trabalhamos muito, economizamos muito e tivemos muita força de vontade. Não sei se sabe o que é ter um objetivo real na vida. Todos cooperamos. Estudamos muito, guardamos muito dinheiro. Vivíamos apenas com o indispensável. E compartilhamos da mesma dor: a dor de saber que, se quiséssemos mesmo continuar com aquilo, teríamos que nos separar. Mas assim fizemos.

Treze. (Dedicado à Mayara)

   Na hora combinada, Enkil veio me buscar. Me levou até um carro caro, abrindo a porta para mim. Vacilei por um momento. Sabia que estava me arriscando - mas a minha vontade de saber era maior.
   Não ouve muita conversa durante o trajeto. Ele me levava para o lado norte, por uma avenida movimentada. Aos poucos, fomos chegando ao subúrbio da cidade.
   Ele parou. Estávamos em um bairro de classe média, em frente à uma casa amarela, com portões gradeados. Pela janela que era visível lá de fora, provavelmente a janela da sala, via-se que a luz estava acesa. Será que tinha mais alguém na casa?
   - Eu moro sozinho - disse ele, para meu espanto. - Deixo as luzes acesas por segurança.
   Meu coração batia descompassado. Por um momento, senti vontade de pedir para ele me levar de volta para casa; mas ele já me dirigia para dentro da casa.
   Entramos em uma sala simples. Piso de cerâmica preto, paredes creme. A janela que eu vira do lado de fora. Dois sofás cor de vinho, poucos móveis escuros. Uma televisão, alguns livros. Nada de sobrenatural ou impressionante.
   - Sente-se - ele disse, me indicando o sofá maior. Sentei-me, ainda quieto, e ele se sentou ao meu lado.
   - O que te faz estar tão calado? - perguntou ele.
   - Não vim aqui para falar, vim aqui para ouvir.
   Ele sorriu.
   - Por onde quer que eu comece?
   - Por que me cortou, aquele dia?
   Essa não era exatamente a pergunta que se formou em minha mente. Minha intenção era perguntar "Por que eu senti aquilo quando você bebeu meu sangue?" - mas achei que essa pergunta soava idiota.
   Ele respirou fundo, antes de começar:
   - Bom, se você quer saber o verdadeiro objetivo disso, infelizmente não saberei responder. Talvez seja por prazer. Você sentiu, sabe do que estou falando - e eu realmente sabia. - Mas, como percebeu, é mais que isso.
   - Realmente. Mas eu não entendo, o que eu senti quando você...
   - Bebi - ele completou.
   - É, bebeu... Bem, não foi comum. Como...?
   - Já entendi sua pergunta. Me permite começar a explicação à partir de minha história? Ficaria muito mais organizado e de fácil entendimento.
   - Como quiser.
   - Certo. Como talvez tenha percebido, vim da França. Tenho três irmãos, que estão, no momento, espalhados pelo mundo. Somos, por ordem de nascimento: Amil, Akasha, eu e Mekare. Não sei se somos irmãos biológicos, mas fomos criados como tal. E esses, obviamente, não são nossos nomes.
   - Conheço esses nomes. São de uma história de vampiros.
   - Exato. Adotamo-os porque decidimos que assim era necessário. Dificulta nossa localização em meios de comunicação. Se alguém procurar por "Enkil bebedor de sangue", encontrará tal personagem. Nome de vampiro, atitude de vampiro. Entende?
   - Acho que sim. Prossiga.
   - Sabe quem são cada um desses personagens?
   - Sim, sei - ele fez menção para que eu continuasse. - Certo. Amil era o espírito sedento de sangue, que invadiu o corpo de Akasha, transformando-a na primeira vampira. Akasha, logo após isso, transformou Enkil em vampiro também. E Mekare é a bruxa ruiva que mata Akasha e, para não matar todos os vampiros do mundo com isso, come seu cérebro, levando para dentro de si o núcleo de Amil.
   - Muito bem. Então, como viu, todos são, de certa forma, os primeiros vampiros. Amil, o mais velho, é a fonte de tudo; Akasha, a primeira vampira e mãe de todos os vampiros; Enkil, o primeiro vampiro; Mekare, que por um ato de canibalismo, se tornou a nova mãe de todos os vampiros.
   - Voltando à minha história, agora. Fomos criados em um orfanato. Órfãos, como você. Uma das mulheres que lá trabalhava sempre nos deu atenção especial. Quando cada um de nós quatro completamos cinco anos, ela começou a nos dar do próprio sangue, uma vez por semana, na hora do banho. A sensação era exatamente a que você sentirá, em breve. Ela nos dizia que, quando crescessemos, deveríamos sair pelo mundo ensinando às outras pessoas o que ela nos ensinaria. Dizia que éramos Os Primeiros a saber Os Segredos do Sangue. Me lembro pouco dela. Ela deixou de trabalhar no orfanato quando eu tinha oito anos.
   - E então pararam de beber sangue? - perguntei. Mas eu sabia a resposta.
   - Não. Amil nos dava seu sangue. Ele já tinha quinze anos quando ela se foi, e foi o que mais aprendeu com ela. Ele nos ensinou o que não tivemos oportunidade de aprender com ela. E isso era a única coisa que nos diferenciava das outras crianças.
   - Não envolviam as outras crianças nisso?
   - Não, de forma alguma. Era algo inteiramente nosso.
   Isso me aliviou. Era terrível imaginar o contrário.

Doze. (Dedicado à Thalita)

   Não foi nenhuma surpresa para mim quando, dois dias após a primeira visita de Enkil, ele reapareceu. Eu sabia que ele reapareceria. Aline que me avisou de sua chegada, e mandei-a levá-lo ao meu quarto.
   - Olá, Rafael, como pediu, dei-lhe seu tempo. Quero minha resposta agora.
   Eu já havia pensado, é lógico. Decidi arriscar. Que mal maior eu poderia sofrer? Estava à ponto de explodir de curiosidade, e ansiosíssimo para algo novo.
   - Pois bem - respondi. - Aceito sua proposta. Quero aprender com você.
   Ele abriu um largo sorriso e me abraçou; eu estava estupefato com tal gesto, porém ao mesmo tempo gratificado. Entenda, Mario nunca foi de demonstrar sentimentos, o que me fez, de certa forma, uma criança carente. Porém não consegui retribuir com tanto entusiasmo.
   - Você não sabe como me faz feliz, meu querido - disse ele, após me soltar. - Bom, tenho muito à lhe contar. O que me diz de hoje, às oito horas, em minha casa? Ela não é tão bela ou espaçosa quanto essa, porém nos fornecerá a privacidade de que precisaremos. Então, pode ser?
   - Sim, como quiser - respondi, impressionado com seu ânimo.
   Então ele partiu, mais feliz que nunca.

Onze.

   Aline fora a primeira que reparara mudanças em mim. Dizia-me que eu estava mais quieto e menos presente, que parecia já não me importar em ser o simpático que sempre fora e que dava pouca atenção ao meu tio. Eu respondia à essas acusações com frases curtas, normalmente dizendo-lhe que estava apenas cansado.
   No dia anterior à nova visita de Enkil, ela viera ao meu quarto. Esse costume que ela iniciara me impressionava, já que antes ela se recusava a entrar mesmo diante de meu convite.
   - Horácio, o que aquele homem estrangeiro queria com você? - me perguntou ela, nessa ocasião.
   Eu estava em minha cama, lendo um livro qualquer. Ela entrara sem nem se dar ao trabalho de bater na porta.
   - Sabe, Aline, talvez fosse mais apropriado você bater à porta antes de entrar, na próxima vez. Eu poderia estar me trocando - respondi rispidamente.
   Ela corou, porém não se deixou abalar. Me olhou com falso desprezo, antes de dizer:
   - Bom, nesse caso, não veria nada que me abalasse; você é apenas um garoto!
   Levantei os olhos do meu livro para olhá-la. Ela parecia ter se arrependido do que dissera, e não era capaz de suportar meu olhar. Ri com desdém.
   - Se sou só esse garoto sem importância que diz, então por que parece se sentir tão atraída por mim? - perguntei, deixando meu livro de lado e me sentando na beirada da cama.
   Ela saiu sem nada dizer.

Dez. (Dedicado à Isabella)

   Certo, devem estar se perguntando: "Por que raios não aceitou, se esperou tanto por isso?". Primeiro, por puro e tolo medo. Sim, eu sentia medo; medo de estar me envolvendo com algo sem volta. Segundo, por vaidade; queria ver se aquele homem me considerava realmente importante, se me procuraria de novo.
   Ele me deu dois dias para pensar. Que dias terríveis! O tempo em que não estava no colégio (assunto que realmente não merece destaque ou importância), passava tocando composições simples ou deitado em meu quarto.

Nove.

   - Comece - eu disse.
   Ele não respondeu, parecia satisfeito em apenas me olhar. Tirou os óculos, revelando seus olhos claríssimos, e observou o local - parecia aprovar. E eu estava satisfeito em apenas estar com ele. Relembrava tudo que eu havia sentido, tudo que havíamos passado. E aguardava.
   - Pode me chamar de Enkil - disse, finalmente. Então reconheci seu sotaque: francês. Sim, belo sotaque francês.
   - Você sabe que a última coisa em que estou interessado é seu nome. Me diga o que fez comigo.
   - Acalme-se, meu jovem, não seja tão afobado. Vou lhe explicar tudo, dê-me apenas tempo. Posso não apenas lhe dizer o que fiz, mas também posso lhe contar a história sobre mim e meus irmãos, posso lhe ensinar a fazer o que fiz, posso lhe mostrar coisas belas, de um jeito que nunca viu. Basta você me aceitar.
   É fato que eu não sabia o que dizer ou fazer. Estava muito, muito curioso, porém ao mesmo tempo descrente. O que ele dizia soava, para mim, irresistível, mas ao mesmo tempo parecia um discurso de pastor religioso de televisão, me dizendo para aceitar Deus.
   - O que terei que fazer para aceitá-lo? - perguntei, em fim.
   - Vai ter que conviver comigo, confiar em mim e acreditar em mim. Vai ter que me ser fiel, guardar meus segredos e fazer o que lhe peço.
   - E o que vai me pedir?
   - Basicamente, seu sangue - e deu-me um sorriso bondoso.
   Certo, qualquer outra pessoa sentiria muito medo - menos eu. Eu sabia o que aquilo significava, e a última coisa que sentia era medo. Aquilo me excitava. Sim, sentir tudo aquilo de novo...
   - Me dê tempo para pensar - pedi.
   Ele pareceu se decepcionar por um momento, apenas um pequeno instante - na verdade, agora, ao lembrar disso, tenho minhas dúvidas de que ele tenha demonstrado algo.
   - Como quiser, Rafael, como quiser.
   Se levantou, mostrando o desejo de ir embora; levei-o até a saída, me despedindo com um breve aperto de mão.

Oito. (Dedicado à Anne)

   Eram cerca de quatro horas da tarde, eu estava no quarto de Mario, conversando sobre uma coisa qualquer, quando Aline entrou.
   - Senhor Rafael, Ícaro está no interfone, diz que espera por você lá fora.
   Ícaro? Desde quando eu conhecia algum Ícaro? Ótimo, devia ser um coleguinha qualquer que conheci por aí.
   - Mande-o entrar - eu disse.
   - Já mandei, senhor, porém ele diz que prefere falar com o senhor lá fora.
   - Certo, já estou indo.
   Mario parecia desconfiado; dei um sorrisinho para ele e saí.
   Provavelmente já sabem quem encontrei lá. Sim, o sujeito que me abordara.
   Era óbvio o motivo de não querer entrar - sempre é estranho garotos de quinze anos serem visitados por homens, mesmo que esse garoto seja eu. Sem contar que havia a possibilidade de eu ter denunciado-o.
   Eu o olhava avidamente. Não estava assustado ou com medo - tinha esperado por isso. Fui até ele e estendi a mão.
   - Prazer, Rafael.
   O sorriso dele aumentou. Ele estava usando calça jeans grossa, regata branca e óculos escuros. Sim, com certeza o mesmo homem. Ele apertou minha mão, respondendo apenas:
   - Prazer.
   Ele irradiava felicidade. Era compreensível: isso significava, afinal, que eu não denunciara-o.
   Meu desejo era dizer "o que quer aqui?" ou "o que quer comigo?", porém temia que, com isso, ele me deixasse sem responder minhas perguntas. Optei por:
   - Quer conversar lá dentro?
   Ele conseguiu sorrir mais ainda. Fez um aceno afirmativo de cabeça, e mostrei-lhe o caminho, levando-o para meu quarto, fazendo de tudo para evitar Mario.
   Pedi-lhe para entrar, fechei a porta e indiquei-lhe as poltronas fofas em frente à janela. Ele sentou-se em uma, com elegância, e esperou.
   Era a hora de encontrar minhas respostas.

Sete.

   Pela primeira vez em minha vida, me sentia triste e entediado. Não conseguia tirar aquele estranho homem do pensamento. Não conseguia deixar de lembrar o que senti quando ele bebeu meu sangue. Não deixava de pensar "não é normal, não é normal, não é normal". Sentia que ia enlouquecer. Em três dias li vários livros, pegos da pequena biblioteca de Mario. Fui também à biblioteca municipal e pesquisei sobre rituais de diversos tipos - nada que descrevesse o que eu senti.
   Então, no quarto dia, veio a resposta.

Seis. (Dedicado à Vanusa)

   Meu quarto, no escuro. Estava deitado na cama, olhando para o teto, pensando. As pesadas cortinas de azul marinho dançavam de um lado para outro, o relógio de pedra azul com miligramas de ouro tiquetaqueava continuamente em cima de minha cômoda, e eu gostava da sensação de minha colcha de seda sob meu tronco nu.
   Tentava relembrar o mais perfeitamente possível o tal sujeito que me abordara. Devia ter cerca de quarenta e cinco anos. Alto, atlético. Não era musculoso, apesar de sua surpreendente força. Cabelos negros curtos e joviais, pele recém bronzeada (provavelmente, em meus pensamentos, estivera em uma praia), olhos azuis muito claros. Seu rosto era muito belo e masculino: quadrado, com traços fortes e lábios carnudos - a única coisa que parecia estar fora do contexto. A voz dele, como descrevi antes, era doce e rouca; ele pronunciava as palavras com um sotaque que não reconheci, porém que me lembrava o amor. Usava roupas simples - calça reta escura e camisa branca.
   Quando cheguei em casa, meu tio conversava na sala com alguns colegas de serviço. Cumprimentei-os gentilmente, pedi licença, e fui ao meu quarto, respondendo qualquer bobagem para Mario quando ele apontou o fato de que eu parecia assustado.
   No quarto, tirei o casaco, que estava sujo de sangue, e minha camisa, que tinha sua manga esquerda cortada no ponto onde o estranho cortara meu braço. Estava ensanguentada. Mario apenas não percebera o sangue em meu casaco por este ser preto. Chamei Aline, uma de nossas domésticas, e pedi-lhe para lavar o casaco e dar fim à camisa, sem que Mario visse; e ao pedir usei o máximo que pude de minha educação e de meu encanto. Aline tinha dezenove anos e se sentia atraída por mim. Corou ao me ver sem camisa, prometeu-me fazer o que eu lhe pedira e se retirou. Tranquei a porta, deitei na cama sem acender a luz e ali fiquei, por cerca de duas horas.
   O que me impressionava não era o fato de ter sido abordado no meio de uma rua escura no subúrbio, abraçado, ter o braço cortado e o sangue sugado, ou de ter a boca beijada após isso. O que me impressionava era o que senti enquanto o sujeito estranho bebia meu sangue. "Vampiro", pensei, como qualquer outro tolo faria. Mas é óbvio que não - eu já havia lido livros suficientes para saber que não. A sensação era, talvez, muito parecida com a que tinha lido há uns dois anos em um livro qualquer. Mas não seja tolo, vampiros não existem! "Então o quê, um fã idiota?". Lógico que não. Aquele homem já era maduro demais para isso, sem contar que, se fosse esse o caso, teria sido muito mais fácil encontrar outro fã idiota. "Mas você sabe que não. O que você sentiu foi real - e você não é um fã idiota", uma vozinha irritante dizia em minha mente. Eu precisava reencontrar aquele homem; mas como?
   Estava absorto, quando vi a maçaneta virar - tentavam entrar. Ignorei, deixando que pensassem que eu dormia. Então ouvi a chave sendo usada. Droga, pensei, a chave mestra da casa. Porém que vi ali não era meu tio, como achei que fosse, e sim Aline. Ela entrou e voltou-se para trancar a porta novamente. O máximo que fiz foi erguer meus olhos para ela.
   - Exijo saber o que aconteceu.
   Isso me assustou. Aline sempre fora calma e profissional - fazia o que pedíamos a ela, sem dar palpites - e agora isso. Mas como era engraçado observá-la! Era visível que precisou de toda sua coragem para dizer tais palavras; muito engraçado também era sua expressão, enquanto ela tentava focalizar o olhar em meu rosto ao invés de em meu peito nu.
   - Por que eu deveria lhe contar? - perguntei, sentando-me na cama, com um arrepio percorrendo a pele por estar sendo observado tão avidamente.
   - Porque... porque... Porque caso contrário, vou contar ao Senhor Mario! - Porém seu tom de voz a denunciava; estava claro que ela não faria isso.
   Levantei-me, me aproximei dela, encostei distraidamente na cômoda. Ela me olhava como se sentisse medo e excitação ao mesmo tempo. Fiquei a olhar para ela.
   Aline era muito simples. Conseguira o emprego após seu pai, que vendia vegetais para meu tio,contar-lhe sobre a má situação financeira da família. Mario resolveu empregá-la, com o trato de que, com parte de seu salário, fizesse algum curso que a interessasse; sempre muito generoso. Ela era bela, porém tinha uma beleza reprimida - não se pintava ou cuidava do cabelo -, e seu corpo era magro e comum. Era do tipo de garota que passa despercebida na multidão. Vinha de família religiosa, e eu duvidava que um dia tivesse se deitado com um rapaz - na verdade, acreditava que nem ao menos soubesse a sensação de ter lábios contra os seus.
   - Foi apenas um louco que me atacou e saiu correndo - disse para era. - Não é nada importante, e não quero alarmar Mario.
   Ela olhou para meu braço cortado, envergonhada por fazer isso. Cheguei bem perto dela, apoiei minha mão em sua cintura e lhe beijei a face.
   - Obrigado por se preocupar. - E me afastei, voltando a sentar na cama. - Agora, se não se importa, gostaria de ficar sozinho.
   Ela me olhava com espanto, e assim ficou por alguns instantes. Quando me virei para o espelho e fiz menção de retirar minha calça, ela saiu apressada, murmurando um "desculpe" e trancando a porta. Ri baixinho, enquanto vestia minha roupa de dormir.

Cinco. (Dedicado à Marcella)

   Quinze anos. Eu já me comportava como um garoto de dezenove, e era alto como um; era sério, preferia dialogar com pessoas adultas, usava roupas formais e meu modos eram impecáveis, como sempre. E é aí que minha história realmente começa.
   Eram aproximadamente nove horas da noite; eu voltava da casa de um ancião, que visitava com frequência. Não, não pense em caso de gerontofilia. Apenas gostava de escutar suas histórias, enquanto ele me servia um chá aguado, que eu aceitava por educação. Ele me admirava e precisava de mim, e eu lhe prestava este serviço, com muito interesse por seus casos de juventude, e seus conselhos absurdamente sábios. Mas estou fugindo do foco; vamos voltar ao que interessa.
   Como eu disse, estava voltando de sua casa, pela rua das Glacínias, quando fui abordado.
   Na época, a rua das Glacínias era morada de novos lotes, casas em construção e becos de fumo; em muitos pontos as lâmpadas dos postes estavam quebradas e os fios elétricos haviam sido roubados, transformando-a em um lugar com pouquíssima luz.
   Eu era uma criatura totalmente contrastante com o cenário. Nunca poderei esquecer: eu estava usando calças negras de veludo fino, camisa de algodão branca com punhos de renda e um casaco grosso, também negro. Na época, tinha cabelos que caiam pelos ombros, que estavam cuidadosamente penteados para trás. Parecia com um garoto de décadas passadas, porém não me importava; era assim que gostava de me vestir.
   Então fui abordado, uma mistura de falta de atenção e olhar distante da minha parte e rapidez e boa esgueira da parte do abordador. Quando voltei a olhar para frente ele estava ali, parado, olhando para mim com um sorriso malicioso e belo, como se estivesse ali há muitos minutos. Não consegui impedir, trombei com ele; porém, ele não pareceu se importar, e nem ao menos ameaçou perder o equilíbrio.
   Me desculpei e tentei me afastar, porém ele me segurava. Disse com uma voz rouca, porém doce, que não havia problema algum, enquanto fechava os braços ao meu redor - sua força era incrível. Tentei me desvencilhar, assustado, porém era impossível.
   - Você é um belo garoto, sabia? - Ele sussurrou ao meu ouvido. Meu rosto estava contra seu pescoço, e eu sentia o cheiro amadeirado de sua colônia. Tudo estava confuso; eu estava com muito medo, paralisado, mas também sentia uma excitação estranha ao sentir seus braços de força incrível ao redor de meu corpo. - Não tema, meu belo anjo... Não irei matá-lo, apenas farei o necessário... - continuou ele.
   Então, para aumentar meu medo, ele retirou uma faca muito limpa e afiada do cós de sua calça. Eu tentava com mais força me desvencilhar, mas era inútil.
   Ele tirou o casaco de um dos meus braços, com gentileza, e me cortou, acima do ombro. Eu não estava acostumado a sentir dor, porém toda a estranheza da cena me impediu de dar importância à isso. Ele sorriu, mostrando seus perfeitos e brancos dentes, aproximou os lábios do corte e tomou o primeiro gole.
   Veio-me uma sensação forte, nauseante, incrível. Eu já não tentava impedi-lo, na verdade, me entreguei totalmente. Meus olhos se fecharam e eu soltei meu peso em seus braços, que me seguravam com carinho. Eu sentia e ouvia o sangue fluindo, e os nossos corações, como se fossem tambores. Era como a sensação anterior ao orgasmo; era perfeito.
   Rápido, muito mais rápido que eu desejava, fui trazido de volta à consciência. Ele se afastara de meu braço, me segurando com pouca força, e seu rosto parecia arder de glória; arrumou meus cabelos para trás, beijou meus lábios e se afastou, correndo à toda velocidade, por um caminho escuro e confuso em meio a paredes não terminadas e materiais para construção. Eu estava paralisado olhando-o se afastar, atordoado demais para fazer coisa alguma.

Quatro.

   Sempre tive experiências que poderiam ser consideradas precoces, creio que porque fui criado como um homem. Senti os lábios de minha primeira garota contra os meus aos onze anos, e de meu primeiro garoto aos quatorze. Deitei-me com minha primeira garota aos quinze. Escolhia meus amantes principalmente pela beleza. Porém, além de minha aparência, eles diziam gostar de meu cavalheirismo e minha forma branda e suave.
   Nunca, nesse período, jurei lealdade a alguém; porém, nada me parecia com os rapazes de hoje. Eu respeitava e amava de verdades minhas companhias. Na verdade, amor é algo que sempre foi simples para mim.
   Usando as palavras de uma futura personagem, "amo tudo que tenho". Por isso, sempre amei meu tio, meus professores (que se impressionavam com meu interesse) e qualquer garota ou garoto que me admirava. O amor, assim como todos os outros sentimentos que passei a sentir, era extremamente intenso, vibrante, real. Podia ser sentido em cada uma de minhas células e calorias.

Três.

   Adolescência. Assim como na minha infância, foi repleta de conhecimentos. Fiz cursos de teatro, sapateado, música, literatura, piano e etiqueta. Como na infância, encantava as pessoas à minha volta - pela beleza de minha pele alva e meus olhos acinzentados, pela minha inteligência, meus bons modos e minha sábia apreciação das artes. Ah, e também pelas roupas com que meu tio me vestia, me me faziam parecer um pequeno homem - camisas macias de algodão, coletes e blazers feitos à medida, gravatas borboleta de finos veludos, e, para ocasiões especiais, chapéus negros de corte e caimento perfeito. Pouco mudei com o tempo - meu gosto por roupas belas e tecidos finos permanece o mesmo.

Dois.

   Os anos se passaram. Fui criado por um tio paterno, que vou chamar carinhosamente de Mario. Um homem extremamente generoso e que sempre foi muito bondoso comigo, e me proporcionou um infância invejável em muitos aspectos, apesar dos problemas que tive com a data do Natal - mas vamos deixar essa parte da história para algumas linhas abaixo.
   Mario era viúvo, e para mim sempre terá quarenta e seis anos. Não tinha filhos, mulher, homem ou bicho de estimação. Era inteiramente meu.
   Vivíamos em uma bela casa, espaçosa, inteiramente em tons de azul e branco, por dentro e por fora. Era repleta dos mais modernos aparelhos eletronicos, porém mesmo assim tinha um confortável ar rústico, com sofás e prateleiras de alvenaria, além de gordas almofadas e pufes por todos os lados. As cortinas eram de veludo, alguns cômodos tinham o chão revestido com carpete, e havia um belíssimo lustre de cristais no saguão de entrada. Tudo do mais impecável gosto. Isso sem falar nas peças artísticas! Sim, Mario tinha uma considerável coleção de quadros e esculturas em estilo clássico, a grande maioria de anjos e paraísos.
   Ah sim, passaremos ao que eu mencionei anteriormente - o Natal. Nunca fui, quando criança, apresentado à religião alguma. Meu querido tio não se importava com Deus, Diabo, bem, mal, morte, inferno, paraíso, espíritos, rituais, orações ou Jesus. Natal, Páscoa, e qualquer outro feriado cristão era, para ele, apenas um dia de folga.
   Porém, eu via coisas sobre o Natal que me intrigavam. Filmes natalinos, neve, luzes bonitas, árvores com bolas coloridas, presentes, Papai Noel, ceias, família. Por que eu não tinha nada daquilo, e nunca tive? Perguntei essas coisas ao meu tio, quando tinha oito anos de idade. Ele pareceu vacilar por um momento, antes de me explicar:
   -Me perdoe, meu querido, por não ter lhe explicado antes. Como você provavelmente deve ter visto em algum lugar, Natal é a celebração do nascimento de Jesus. Porém, isso nada significa para mim, e torço para que nada signifique para você. Jesus é uma lenda, um homem com supostos poderes, como aqueles super-heróis que você vê nos seus filmes. Isso não deve nos afetar, meu doce. Devemos ter olhos e mentes voltadas para a razão, devemos ser admiráveis homens do século XX!
   Toda essa explicação de nada significou para mim. Eu, como a maioria das pessoas no tempo moderno, não me importava com Jesus; e sim com os presentes e a comida. Mas, sem outra escolha, restou à mim aceitar.

Um.

   Olá, muito prazer. Sou Medeiros. Rafael Horácio Medeiros. Mas é óbvio que esse não é meu nome, vocês sabem. Eu não lhes daria meu verdadeiro, assim, tão facilmente. Mas façamos de conta que este é meu nome. E vamos à minha história.
   Nasci normalmente. Não houve parto complicado, mamãe presa no trânsito ou sozinha em casa em um dia de chuva - não, nasci em um limpo hospital, do jeito mais comum possível; nada de sobrenatural ou admirável.
   Meus pais também eram, de um modo geral, comuns. Recém-casados, apaixonados, felizes. Mamãe era filha de alemães - uma bela mulher bastante loura, pele branca e aveludada, cabelos ralos, olhos verdes e assustadoramente penetrantes. Papai era muito belo, um moreno de corpo forte e bem definido, pestanas grossas, assim como as sobrancelhas, porém isso - do contrário do que se pode imaginar - dava-o um ar ameno e bondoso.
   A gravidez não fora planejada, porém bem-vinda por ambas as famílias envolvidas. E eu nasci, um belo bebê branco com fartos cabelos louro-escuros, e olhos bondosos como os do pai e penetrantes como o da mãe.
   Meus primeiros três meses foram como os de qualquer outro bebê humano. E então veio a tragédia.
   Meu pai morreu. Atropelado. Simples e rápido. Uma hora respirava, outra não.Sem grandes mistérios.
   Minha mãe ficou abalada. E quer saber? - não vou me prolongar. Tentou viver por três semanas, mas não suportou a dor. Enforcou-se na viga de madeira do teto da lavanderia.
   Se me lamento por suas mortes? Sim. Se sofro por suas mortes? Não. Entenda, não os conheci. O que sei sobre eles e sobre esses acontecimentos é o que me contaram e o que vi em fotografias. Não poderia amá-los, mesmo se quisesse.
   Apenas lamento pela escolha de minha mãe. Por saber que era fraca, e que não queria viver nem para o próprio filho. Isso costumava me fazer chorar, em meus momentos de crise.