Essa é minha história. Não importa para mim se irá ou não acreditar nela. Também não me importo com qualquer outra coisa. Peço-lhe, apenas leia.

Dezoito. (Dedicado à Camille)

   Enkil segurou meu braço com firmeza, sem dizer palavra alguma. Eu sentia medo, porém não resisti. Ele pegou o athame, e com precisão fez um furo em meu pulso. Não reclamei. Ele sorriu, olhando para o sangue fluir, e aproximou seus lábios do corte. Bebeu.
   Mais uma vez, aquela sensação tão complexa, tão sublime. Eu escutava o sangue passeando pelas minhas veias, e escutava meu coração descompassado. Mas dessa vez, ouve outra coisa também. Cenas e mais cenas se passavam pela minha mente. A primeira vez que vi as fotos de meus pais, o canário de Mario, minha tia Luisa dizendo que eu não tivera infância, a garota dizendo que eu era insensível, o vaso chinês quebrado, muitos apertos de mãos, beijos, choros. Tudo se passava pela minha cabeça, rápido, em turbilhões. Então parou.
   Percebi que Enkil se afastara de mim. Não saberia calcular quando tempo durou. Minutos, provavelmente. Estava arquejante, e um filete de sangue escorria-lhe da boca. Olhou para meu rosto, se recompondo, e disse:
   - Agora é sua vez.
   Me entregou o athame, que peguei com insegurança. Queria protestar, mas ele já havia me estendido o braço.
   - Quero que você corte aqui, acima do cotovelo - me indicou um ponto no antebraço, em que uma veia particularmente visível se encontrava. - Fure aqui com a ponta do athame, certo? Depois puxe um pouco, para ficar um furo de tamanho considerável. Não precisa ter medo, se estiver me machucando além do necessário, te avisarei. Agora faça.
   Minha mão tremia. Respirei fundo, para recuperar o controle. E cortei, como ele havia me dito para fazer. O sangue jorrou rápido.
   - Isso, meu anjo, agora sabe o que fazer.
   Eu não sabia. O sangue escorria pelo braço dele, e ao mesmo tempo que eu sentia uma repulsa enorme, eu era atraído por aquilo. "Deixe de ser medroso, experimente", algo dizia em minha mente. E assim o fiz.
   A sensação era tão boa quanto a outra, porém, de uma forma contrária. A sensação que a outra provocava era de submissão, enquanto essa era de poder. Eu senti o gosto metálico do sangue, porém pouco percebi-o. Um barulho semelhante à muitos sussurros invadia meus ouvidos. E então uma cena me veio na mente; era como se eu estivesse me recordando de uma lembrança minha, porém não era minha, não tinha como ser.
   Na cena, uma mulher me banhava, apressada. Eu devia ser uma criança. O lugar era feio, um banheiro de piso e azulejos brancos, encardidos. O água que caía sobre meu corpo era fria. Ela conversava apressada comigo - eu não conhecia a língua que ela falava, porém entendia perfeitamente.
   - Não deve, nunca, contar a alguém sobre isso, certo, meu filho? Se contar, não poderei mais lhe dar de beber. Se contar, serei expulsa.
   - Eu já sei disso, já me disse isso - eu respondi, naquela mesma língua, e com uma voz que não era e nunca fora minha.
   A cena mudou. Agora eu estava em um quarto, com chão de madeira e paredes brancas, sentado em uma cama de ferro muito simples, com um colchão fino e desconfortável. O sol da manhã entrava pela janela, e eu ouvia crianças brincando do lado de fora. Ao meu lado, outra cama, idêntica à minha. Um garoto maior que eu estava nela, com a boca grudada no braço da mulher que me banhara. Eu sabia o que ele estava fazendo.
   A cena se dissipou e fui trazido com violência de volta à mim. Eu respirava rapidamente. Enkil se encontrava à minha frente. Segurou meu braço e, com um algodão, limpava o sangue de onde ele havia cortado anteriormente.
   - Segure isso aqui - disse ele. - Faça parar de sangrar.
   Segurei o algodão com força em meu pulso cortado. Ele fazia o mesmo com seu braço.
   - Aquela era a mulher do orfanato? - perguntei, com a voz falha.
   - Sim. Pensei que gostaria de ver isso.

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